quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

alegações finais #9



«Quando a vida de um homem termina de um modo tal que a sua alma não é roubada a Deus devido aos pecados do seu corpo e que apesar de tudo consegue manter a boa vontade e o respeito dos seus companheiros, podemos afirmar que foi um trabalho útil.
Se eu tive alguém a desejar-me boa sorte entre as boas mulheres sensatas, eu serei ainda mais avaliado por ter contado esta história até ao fim. E se isto foi feito para agradar a uma em particular, ela terá de reconhecer que eu disse algumas coisas agradáveis.»

Wolfram von Eschenbach, "Parsival", Vega, 2010

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

A vida não é um sonho #35



«Quando o camponês descobriu que a sua mulher o traiu, obrigou-a a preparar a mesa para três. E durante o resto da vida comeram contemplando, diante deles, o terceiro prato vazio.»

Tonino Guerra, "Histórias para uma Noite de Calmaria", Assírio & Alvim, 2002

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

interpretose now #15



«Porque agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido.»  

Corintios 13:12 


segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

diário dos mesmos pesares #35



«Parece que existe no cérebro uma zona específica, que poderíamos chamar memória poética, que registra o que nos encantou, o que nos comoveu, o que dá beleza à nossa vida. Desde que Tomas conhecera Tereza, nenhuma mulher tinha o direito de deixar qualquer marca, por mais efémera que fosse, nessa zona do seu cérebro.» 

Milan Kundera, "A Insustentável Leveza do Ser", Dom Quixote, 2013

domingo, 26 de janeiro de 2014

A revolução ficou atrás de nós #3




«A malta das praxes tem as suas hierarquias, veste-se a rigor, promove sociedades secretas com rituais mais ou menos obscuros, venera fardas e hinos, sob o olhar cúmplice e apaixonado de pais e professores orgulhosos. Têm as suas bandeiras, os seus símbolos. A academia aceita, desmistifica, moraliza eventuais atentados à dignidade humana, desinflaciona a dimensão grotesca e bruta da humilhação iniciática. Afinal, só é praxado quem quer e quem quer gosta, voluntaria-se se for preciso, está disposto a tudo para poder sentir-se parte integrante do grupo que há-de promovê-lo à condição de senhor perante futuros escravos. Assim se cresce e se faz homem e mulher quem nasça no mundo civilizado. É a tradição, palavra há muito utilizada para desculpabilizar e absolver todo o tido de atrocidades. O curioso disto está em constatar certo etnocentrismo encapuçado. As mesmas pessoas que vemos falar das praxes com orgulho ou simples desdramatização são capazes de apontar com a mais estúpida insensatez o fanatismo religioso islâmico, os rituais incivilizados da raça cigana, a violência genética dos pretos, numa prática do preconceito e do estereótipo cultural há muito enraizada na assoberbada nossa cultura.»

Henrique Fialho, "antologia do esquecimento",  já não há pachorra para gelatina de morango.

sábado, 25 de janeiro de 2014

Recomposições de Metades #7


«Eu penso por intermédio de hieróglifos (meus). E para viver tenho que constantemente me interpretar e cada vez a chave do hieróglifo, estou certo que o sonho — coisa (minha) (nula), não realizado — é a chave do mesmo.»


«Eu escrevo por intermédio de palavras que ocultam outras — as verdadeiras. É que as verdadeiras não podem ser denominadas. Mesmo que eu não saiba quais são as "verdadeiras palavras", eu estou sempre aludindo a elas. Meu espetacular e contínuo fracasso prova que existe o seu contrário: o sucesso. Mesmo que a mim não seja dado o sucesso, satisfaço-me em saber de sua existência.»

Clarice Lispector, “Um Sopro de Vida (Pulsações)”, Editora Nova Fronteira, 1978

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Ouvido no estrangeiro #8



«A THING of beauty is a joy for ever:
Its loveliness increases; it will never
Pass into nothingness; but still will keep
A bower quiet for us, and a sleep
Full of sweet dreams, and health, and quiet breathing.        
Therefore, on every morrow, are we wreathing
A flowery band to bind us to the earth,
Spite of despondence, of the inhuman dearth
Of noble natures, of the gloomy days,
Of all the unhealthy and o’er-darkened ways        
Made for our searching: yes, in spite of all,
Some shape of beauty moves away the pall
From our dark spirits. Such the sun, the moon,
Trees old and young, sprouting a shady boon
For simple sheep; and such are daffodils       
With the green world they live in; and clear rills
That for themselves a cooling covert make
’Gainst the hot season; the mid forest brake,
Rich with a sprinkling of fair musk-rose blooms:
And such too is the grandeur of the dooms        
We have imagined for the mighty dead;
All lovely tales that we have heard or read:
An endless fountain of immortal drink,
Pouring unto us from the heaven’s brink.

  Nor do we merely feel these essences        
For one short hour; no, even as the trees
That whisper round a temple become soon
Dear as the temple’s self, so does the moon,
The passion poesy, glories infinite,
Haunt us till they become a cheering light        
Unto our souls, and bound to us so fast,
That, whether there be shine, or gloom o’ercast,
They alway must be with us, or we die.» 

John Keats, "The Poetical Works of John Keats", London: Macmillan, 1884


quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Inaugurar sentimentos, o amor por vir #20



«Visão, possessão, vazio. Errância, pobreza, ódio. Rebelde, comunidade. Ou pensamento. Escrita. Amor sem significação óbvia nem outra. As palavras vivem de serem vivas, da decisão que as possui,  do arrebatamento interior, de não serem bens, propriedades, objectos que se usam e nos desgastam, mas intensidades, sopros onde os corpos se deslocam e se encontram. Amantes.» 

Silvina Rodrigues Lopes, "Teoria da Des-possessão (Sobre Textos de Maria Gabriela Llansol)", Averno, 2014 

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

A vida não é um sonho #34



«Ele tinha caí­do de joelhos sobre um degrau e torcia as mãos. Sua face estava pálida e crispada, os dentes batiam, os olhos inundados de lágrimas, e todo o corpo sacudido por soluços que ele procurava reprimir e se transformavam em suspiros e silvos entrecortados.
Edele conservava-se sentada.
“Acalme-se, homem” disse ela num tom de sofrí­vel compaixão, não se deixe abater dessa maneira, seja um homem! Ouça: levante-se, dê uma volta pelo jardim e procure recuperar a calma.
“E a senhora não poderá amar-me de jeito nenhum?” gemeu Bigum baixinho. “Ah, é horrível não há nada em minha alma que eu não consentiria em matar, em degradar, se com isso pudesse conquistá-la! Nada! Se me propusessem a loucura para poder possuí­-la, possuí­-la nas visões da loucura, eu diria: “Tomem o meu cérebro, destruam implacavelmente esta maravilhosa construção e arrebentem os fios delicados que ligam o meu espí­rito ao radioso carro triunfante do Espí­rito universal, deixem-me sucumbir no lodo da matéria, sob as rodas do carro, deixem que os outros prossigam na sua rota magní­fica para a luz!”. Compreende? Compreende que mesmo que seu amor viesse despido de todo brilho, de sua auréola de pureza, envilecido, enlameado, como uma caricatura do amor, um fantasma mórbido, eu ainda o aceitaria de joelhos, como se fosse uma sagrada hóstia? Mas é inútil, tanto o que eu tenho de melhor como o que eu tenho de pior, é inútil! Clamo pelo sol, e ele não brilha; apelo para a estátua, ela não responde… Responder! Mas que resposta pode ter o meu sofrimento? Não, estas torturas indizí­veis, que estrangulam o mais í­ntimo do meu ser em suas raí­zes e apenas roçam pela senhora, estas dores apenas lhe causam um pequeno arranhão, e a senhora em seu í­ntimo ri ironicamente da paixão insensata do preceptor!…»

Jens Peter Jacobsen, "Niels Lyhne”

domingo, 19 de janeiro de 2014

Ela tem os teus olhos #10



«Afirma que o tipo de luz captado pelos olhos determina as reacções das células humanas. As suas experiências com plantas e animais procuram demonstrar que mesmo variações de minuto no espectro do comprimento de onda (aquilo a que chamamos "cor") - entre um e outro tipo de luz artificial, por exemplo, ou luz natural e artificial - provocam importantes alterações bioquímicas.» 

Jerry Mander, "Quatro Argumentos Para Acabar com a Televisão", Antígona, 1999

sábado, 18 de janeiro de 2014

a perfeição é uma dada forma de imperfeição #6



«Das pessoas elegantes espera-se que, na sua vida privada, estejam isentas da ânsia de benefícios que, pela sua posição, a elas afluem de um ou de outro modo, e do estólido enervamento nas circunstâncias mais imediatas, que a sua limitação cria. Delas se espera o gosto aventureiro pelas ideias, a soberania relativamente à situação dos interesses particulares, o refinamento das formas de reagir, e supõe-se que a sua sensibilidade é contrária, pelo menos em espírito, à brutalidade de que o seu próprio privilégio depende, ao passo que as vítimas dificilmente contam com a possibilidade de saber o que é que as converte em tais.»

Theodor W. Adorno, "Minima Moralia", Edições 70, 2001

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

morrer no acto



©Taviani,Paolo & Vittorio;2012

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

interpretose now #14



«Todo o acaso é maravilhoso - contacto de um ser superior»
Novalis

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

o poeta sabe menos que o poema #13



Vou-te dar um presente
eu gosto de presentes
é uma caixa de jóias
é tão bonita
dentro está um anel com uma pedra preciosa
porque é tão grande?
toma
porque é tão grande?
toma
cuidado
dentro está um anel com uma pedra preciosa
mas talvez nunca o chegues a pôr no dedo
na caixa está uma serpente
para pegares no anel tens de abrir a caixa
se abrires a caixa a serpente pode picar-te o dedo
e tu podes morrer
se não abrires a caixa

Adília Lopes, "Obra", Mariposa Azual, 2000

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

domingo, 12 de janeiro de 2014

Retrato de Família #27



Charles B. Karamazov (1920-1994)

«O amor é uma espécie de preconceito. Nós amamos o que precisamos, amamos o que nos faz sentir bem, amamos o que é conveniente. Como podemos dizer que amamos uma pessoa quando há mais dez mil pessoas no mundo que nós amaríamos mais se conhecêssemos? Mas nós nunca conhecemos.»

sábado, 11 de janeiro de 2014

prove que não é um robô #7



«O exterior e o interior formam uma dialética de esquartejamento, e a geometria evidente dessa dialética nos cega tão logo a introduzimos em âmbitos metafóricos. Ela tem a nitidez crucial do ‘sim’ e do ‘não’, que tudo decide. Fazemos dela, sem o percebermos, uma base de imagem que comandam todos os pensamentos do positivo e do negativo. Os lógicos traçam círculos que se superpõem ou se excluem, e logo todas as suas regras se tornam claras. O filósofo, com o interior e o exterior, pensa o ser e o não-ser (o caso da ”minha” poética, especificamente). A metafísica mais profunda está assim enraizada numa geometria implícita, numa geometria que – queiram ou não – especializa o pensamento; se o metafísico não desenhasse, seria capaz de pensar? O aberto e o fechado são metáforas que se liga a tudo, até aos sistemas» 

Gaston Bachelard, "A Poética do Espaço", Martins Fontes, 1996 

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Imediatamente embora pouco a pouco #37



«No momento em que se pode fazer cinema, já não se pode fazer o cinema que nos deu vontade de o fazer»

Jean-Luc Godard, "Nouvelle Vague", Cinemateca Portuguesa, 1999

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Inaugurar sentimentos, o amor por vir #19



«Um homem apaixonou-se por uma pedra. Não era uma pedra enorme, era apenas uma pedra grande e pesada, demasiado pesada para que o homem a levasse consigo; por isso ele ficou perto dela, em cima dela, tanto tempo quanto conseguiu. Depois chamou um guindaste, pediu que a pedra fosse içada a cerca de dois metros de altura, e, colocando-se debaixo dela, pediu ao maquinista que a deixasse cair.»

Luís Ene, “Interruficções”, enfermaria6.com, 2014

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Perguntas Abandonadas #36



«Que outra realidade pode esperar-me
___ se não for a realidade
que eu já conheço, elevada
ao fulgor do desconhecido?» 

Maria Gabriela Llansol, Caderno 1.50, 23 de Abril 1998

sábado, 4 de janeiro de 2014

ninguém é filho das ervas #26



«...tenciono mostrar como esse pequenino ruído interior, que não é nada, contem tudo; tenciono mostrar como, com o apoio bacilar de uma sensação única, sempre a mesma e deformada desde a origem, um cérebro isolado do mundo é capaz de criar um mundo...»
Remy de Gourmont

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

a temperatura do corpo #34



«Ser amigo de uma pessoa nobre e fazer ginástica, eis duas das mais belas coisas que existem no mundo. Dançar e encontrar alguém que prenda a minha atenção são para mim uma e a mesma coisa. Gosto tanto de pôr os braços e as pernas e os espíritos em movimento. Já só balançar as pernas é tão engraçado! Fazer ginástica também é estúpido, não leva a nada! Será que tudo aquilo de que eu gosto e prefiro não leva a nada?» 

Robert Walser, "Jakob van Gunten", Relógio d´Água, 2005